Folha da Bahia

Especialistas e autoridades de saúde apontam aumento expressivo no atendimento a dependentes químicos desde o início da pandemia

A Covid-19 vitimou mais de 555 mil brasileiros, mas também causou impactos sobre aqueles que sobreviveram. A pandemia fez suas vítimas invisíveis, como os desempregados, aqueles que perderam familiares ou amigos queridos, estudantes e as pessoas que passaram a conviver com quadros de ansiedade e depressão, por exemplo. No entanto, especialistas e autoridades de saúde também alertam para as consequências da pandemia sobre os dependentes químicos. 

De acordo com o Ministério da Saúde, os hospitais credenciados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) registraram aumento de 54% no atendimento a pessoas por causa do uso de alucinógenos, entre março e junho de 2020, na comparação com o mesmo período do ano anterior, ainda sem pandemia. 

Para Andrea Gallassi, professora da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas, a relação da pandemia com o aumento no consumo de drogas e, por consequência, com maiores índices de atendimento na rede de saúde existe, mas com ressalva. 

Segundo ela, estudos internacionais apontam que a Covid-19 não teve impacto significativo sobre as pessoas que consumiam drogas, como o álcool, de forma “moderada e social”, mas sim sobre quem já estava vulnerável. “Alguns estudos demonstraram que aquelas pessoas que já apresentavam problemas relacionados ao uso de álcool e de outras drogas tiveram um agravamento de seus quadros [na pandemia]. Elas passaram a usar mais álcool ou qualquer outra droga, o que resultou na necessidade de mais serviços hospitalares”, avalia.

A tendência se observa também na rede privada de saúde, confirma Tiago Soares Lima, psicólogo e coordenador de uma clínica de reabilitação particular. Ele estima um aumento de 50% nas internações para dependentes químicos na unidade onde trabalha desde o início da pandemia. “A gente está tendo uma grande procura, não só por atendimento ambulatorial, como também por internação, devido ao aumento significativo, principalmente, no consumo de bebida alcoólica”, destaca. 

No período pré-pandemia, a clínica atendia 80 pessoas, em média, entre dependentes químicos e pacientes com transtornos psiquiátricos. Hoje, Tiago diz que a unidade acolhe cerca de 130 pessoas. 

O psicólogo diz que há, sim, ligação da pandemia e seus efeitos sobre as diversas esferas da vida dos indivíduos com o maior número de internações para dependentes químicos. Segundo o profissional, o isolamento social e o menor contato entre as pessoas contribuíram para o entristecimento, a depressão e outros gatilhos para o consumo de drogas, em busca do que ele chama de “prazer imediato”. 

“[Para eles] é muito mais fácil estar em casa, sem ter contato com as outras pessoas que eu gostaria de estar tendo, se eu estiver sob efeito de alguma substância, em vez de procurar um atendimento”, exemplifica. 

Tiago diz que os idosos estão entre aqueles que mais recorreram ao consumo excessivo de álcool durante os últimos meses. “A gente vê um aumento muito expressivo na questão do consumo de álcool, principalmente na terceira idade. Pessoas que realmente foram forçadas a seguir as medidas sanitárias e estarem dentro de casa”, conta. 

Medo

Célia Moraes trabalha há 32 anos com a reabilitação de dependentes químicos. Atualmente, ela é presidente do Desafio Jovem de Brasília, uma comunidade terapêutica do DF fundada em 1972. Ela conta que a procura por acolhimento aumentou bastante nesse tipo de instituição. É comum, diz Célia, comunidades com todas as vagas ocupadas e ainda listas de espera. 

Segundo ela, dois fatores também contribuíram para essa corrida às unidades de tratamento e reabilitação: o medo da morte e a sensação de proteção. “Eles estão vendo familiares, amigos, jovens saudáveis morrendo e, então, eles olham para si e pensam ‘bom, eu tenho que me cuidar’, e o dependente químico busca esse cuidado na rede de atendimento”, acredita. 

Célia ressalta que o aumento da apreensão de drogas pelas forças policiais no último ano também indica crescimento na procura por drogas, desde as que são legalizadas, como o álcool e o tabaco, até as demais, incluindo alucinógenos, tendo a maconha como destaque. “Isso é um indicativo para dizer que o consumo também aumentou, porque se não tem o consumo não tem a oferta da droga”, relaciona. 

O Programa Nacional de Segurança nas Fronteiras e Divisas, o Vigia, ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, apreendeu 111% mais drogas no período que vai de junho de 2020 a junho deste ano se comparado aos doze meses anteriores. Foram 673 toneladas de drogas, sendo a principal a maconha. 

Desafio local

A resposta aos problemas envolvendo a dependência química tem nas gestões municipais o ponto de partida. Embora muito diferentes entre si, eles têm semelhanças quando assunto é o consumo de drogas pela população. De acordo com o Observatório do Crack, da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), 85,44% das cidades brasileiras enfrentam problemas devido ao uso dessa substância. 

Saúde, assistência social, educação e segurança pública são as áreas mais afetadas, de acordo com a entidade. A nível público, a rede de assistência aos dependentes químicos conta com os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), os Centros de Referência de Assistência Social (Cras), os Conselhos Municipais de Políticas sobre Drogas (Comad), entre outras. 

Na opinião da professora Andrea Galassi, o Brasil deixou de dar atenção a um formato que funcionaria melhor, com investimentos sobretudo nos Caps. 

“O Caps é o modelo psicossocial em que a pessoa é atendida no serviço perto da casa dela. Ela volta para casa e se precisar de uma internação, ela vai ser internada por um curto espaço de tempo, seja no próprio Caps, que tem leito em que a pessoa pode ficar 15, 20 dias, seja num hospital geral, que tem uma internação psiquiátrica. A gente entende que a pessoa sai da crise, fica internada ali num tempo pequeno. Saiu da crise, volta para o atendimento no CAPs, para sua vida”, diz.

Segundo Galassi, o recuo da pandemia e o avanço da vacinação em paralelo ao funcionamento dos serviços de apoio aos dependentes químicos deve melhorar os indicadores. “A minha expectativa é que, com o retorno dos atendimentos de uma maneira mais sistemática nos serviços, eu imagino que essas pessoas voltem para os atendimentos nos Caps, que elas retomem essa frequência e que isso diminua a exposição delas ao uso das substâncias”, conclui. 
 

Fonte: Brasil 61

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